No Brasil, há um bom tempo, todo ano é eleitoral. Com o fluxo irreal de informações online, desdobramentos da eleição anterior e preparativos para a próxima, a impressão é que tudo adquire um tom de campanha, visando o benefício de novos (ou nem tão novos) atores.
O tanto de discussões, debates, opiniões e análises criam a ilusão que há espaço para todos, mas não. Para as mulheres, entrar nessa engrenagem sempre foi mais difícil.
A porcentagem de eleitas esteve por muitos anos estagnada (passou de 15% para 17,7% a proporção de deputadas federais em 2023) e as leis criadas para alavancá-la sofrem um boicote — uma das armas mais poderosas do machismo — cada vez mais sofisticado.
Com uma lupa, vê-se que dentro do grupo de mulheres essa dificuldades e boicotes se apresentam de formas mais estruturantes e dolorosas, e partem de lugares absolutamente diferentes dependendo da cor da pele.
Na pesquisa lançada nesta semana pel’A Tenda das Candidatas — Combatendo a Sub-Representação de Gênero e Raça na Política (2020-2022) — há uma profunda análise sobre como mulheres brancas e negras se veem, se colocam e agem diante da política.
A partir daquelas que buscaram ciclos de formação como forma de entrarem mais preparadas na política partidária, A Tenda reuniu informações fundamentais para entender como o machismo e, principalmente, o racismo travam e atrasam a pluralidade de corpos e ideias na arena política.
Chamou a minha atenção o capítulo destinado à autoestima e imagem política dessas mulheres.
Os dados d’A Tenda mostram que 3 em cada 4 mulheres ouvidas se organizam coletivamente, seja em associações, comunidades, ONGs ou grupos afins. E mulheres negras são 60% dentro desse grupo, maioria incontestável.
Mas, numericamente, os dados escancaram a subjetividade do racismo — que por muitas vezes é bem objetivo. Todas as mulheres brancas que se organizam coletivamente se veem como liderança política, diferentemente das mulheres negras: algumas não se veem como líderes.
Ainda que estejam dedicando seu tempo à política, elas não se enxergam como parte determinante dela. E esse tempo dedicado se soma à já conhecida sobrecarga causada pelo trabalho que é fonte de renda e pelo trabalho invisível do cuidado. Não é de graça.
O dado me remeteu à minha infância, quando via as mulheres de minha família sendo lideranças naturais dos espaços que ocupavam.
Eram elas quem conseguiam remédios para os vizinhos, faziam contatos para vaga em hospitais, recebiam doações de cadeiras de rodas e, no domingo, arrumavam tempo para ir até a igreja rezar por toda aquela gente.
Hoje, as enxergo como líderes naturais, natas, prontas para tudo — até para serem Presidentes da República. Caso fossem perguntadas, dificilmente se veriam assim.
Diriam que o que fazem “é assim mesmo”, contariam alguma história de que suas mães e avós faziam igual.
Penso, então, que o conceito de liderança é ancestral, é muito nosso. Apropriar-se dele é opcional — no meu caso, respeitosamente, opto pelo “não — mas negá-lo é resultado poderoso e (agora, sim) objetivo do racismo.
É o racismo que permite que não vejamos a potencialidade dessas organizações e articulações, os benefícios e avanços proporcionados por essas mulheres.
A ocupação da política partidária pelas mesmas famílias e rostos ao longo de toda a história do Brasil mentiu para a sociedade, como se só eles soubessem ser líderes. Caso esse véu caia dos olhos, a troco de quê seguiremos votando neles, os de sempre?
A depender do sistema político atual — composto principalmente por homens cis brancos — a liderança exercida pelas mulheres negras continuará sendo vista como menor. Quando, na verdade, essas mulheres podem e vão ser capazes de ampliar seus conhecimentos e governar uma cidade, um estado e um país.
Os dados d’A Tenda mostram que entre as mulheres que se enxergam como líderes, negras estão principalmente nas comunidades (29%), enquanto mulheres brancas estão mais em ONGs e projetos do terceiro setor (36%).
Não sem dor, são as mulheres negras que mais gritam por seus grupos, comunidades, familiares, amigos e vizinhos. Líderes, queiram ou não. A autopercepção dessa força pode ser destrutiva para um sistema que sempre quis nos manter à margem. Por isso, não há interesse algum em mudança.
Quando falamos dos impactos do racismo na autoestima das mulheres, talvez o primeiro pensamento nos leve até a estética. Mas tem camadas, como estas expostas nas linhas acima. Camadas que impactam a nós, mas também a quem está em volta.
O racismo atrapalha o avanço rumo a um país mais equânime socialmente, pois impede que pessoas que mais pensam no coletivo acessem a política partidária. Se é isso que ouvimos de mulheres que dão o passo de tentar uma candidatura, o que mais não ouviríamos daquelas que até têm esse desejo, mas desistem previamente?
A Tenda das Candidatas é uma iniciativa que vai na contramão. Ensina essas mulheres a fazer campanha política, dá ferramentas para que elas furem a bolha do patriarcado racista da política partidária e, de novo, não sem dor, acolhem as demandas específicas que essas mulheres carregam.
Em um mês de março que marca os cinco anos sem Marielle Franco, lembremos de outras políticas negras, forjadas em suas atuações comunitárias e eleitas para um cargo político nas últimas eleições.
Elas carregam a responsabilidade de respeitar a memória de Marielle, mas também a força de si, suas lutas, suas vidas.
Ganhamos, enfim, apesar de termos perdido tanto, tanto que parecia que nem íamos ter mais nada depois daquele 14 de março. Mas tivemos, estamos tendo.
Novamente, não sem dor, mulheres negras que “chegam lá” enfrentam o racismo diário, que chegou no seu ápice com o assassinato de Marielle mas continua operando de muitas formas.
Mas um ano que começa com uma mulher negra — e líder — entregando a faixa presidencial a um Presidente da República pode ser um início de um período por mais de nós até que sejamos destinatárias daquela mesma faixa. Também por Marielle, mas por um Brasil inteiro.